terça-feira, novembro 06, 2018

Estourar a bolha


Inicialmente falarei sobre culpa, permitirei que os primeiros parágrafos sejam sobre ódio, deixar a ira dos primeiros minutos sair, pra depois concluir com amor.

Aponto dedos aos culpados, não aos óbvios alienados, membros dos cultos de amor a deus e de ódio ao resto que não é deus, ou mito, mas aos culpados entre nós.

A culpa é da mídia, que se acovardou (como sempre) e se assumiu no papel do “junta-te ao que vence”, negando voz aberta contra o absurdo inegável, algo que timidamente tentou no início dos embates eleitorais.

A culpa é do PT também, que nunca puxou o freio das irresponsabilidades que teve nas costas desde o passado recente até a fatídica campanha eleitoral dos últimos meses. Brincaram na beira do precipício e caímos todos juntos. Já comentei entre amigos e repito meu delírio utópico de que o mínimo de ética que tal partido poderia ter tido frente à esse precipício, era de jogar a toalha e humildemente anunciar sua retirada das eleições ainda no primeiro turno.

A culpa é minha e a culpa é sua também, que repercutimos infinitamente a publicidade virtual do nosso novo presidentóide, e de tantos outros similares (Feliciano e afins), compartilhamos, demos [des]likes em todo o conteúdo que circulava por aí, sem medir ou prever o ricochet de manter essa voz torpe constantemente viva no debate público, e o monstro cresceu.

Se agora vocês lêem o silêncio das minhas palavras no seu celular e computador, é por que estou aqui também, na mídia social que só nos permite o olhar faminto por drama, a visão comprometida por algoritmos, e que por pura contradição deu VOZ à ignorância e a alienação - com solene ajuda da Cambridge Analytics.
Na minha casa a cozinha e a sala de estar são um só cômodo, a cozinha que em diversas sociedades pelo mundo simboliza o espaço de comunhão entre pessoas, de conversas e troca de idéias - estando junto da sala de estar fortalece essa imagem, mas ainda não consegue desconectar alguns amigos que visitam, da constante conexão com o mundo que não está de verdade ali.

No cansaço de me entregar às segunda-chances pra essas plataformas, decidi deixá-las - ame-a ou deixe-a, já diria o nosso novo presidentóide. Não confio mais em como tudo é administrado, não confio em como as informações vieram a circular, não tolero a bolha social e muito menos o drama de novela das 8 que tudo sempre parece tomar - ademais da verdadeira importância dos fatos - e exauri o último pingo de resistência que tinha em tentar ignorar o fato de que eu contribuo pra tudo isso.

Agora é hora de amar mais e de novo, pintar o mundo real, unir-nos de verdade. Faremos mais arte, faremos mais sexo, e seremos ainda mais contradição ao ódio petulante e crescente da nossa sociedade - global por sinal, o fenômeno vai além do Oiapoque.

À minha voz, lhe reservo de novo a liberdade do ar lá fora, ao meu corpo lhe reservo a ocupação do espaço e a liberdade de comportamento, e aos meus sensos e sensatez entrego o direito de ser ainda mais oposição, lado a lado de irmaXs progressistas. Mostraremos que só o amor constrói, e o amor é real, muito mais real do que minhas palavras escritas.

quarta-feira, fevereiro 14, 2018

Para mim, para você, para um amigo e para mim

Eu amo e odeio a imagem do poeta perdido, fumante;

Hoje busco uma depressão forçada, anseio a decadência, fumo para denegrir.

Fumo para ser poeta, e poetizo porque o dia me deprime.
Abuso da imagem que me convém.

Hoje quero ter barba amarela, de fumaça, da cor da chama de vela à minha frente, da cor do cliché.
E bebo para fingir que as coisas não estão assim, porque agora transformo o nulo em verdade, para poder poetizar.

Poetizo a dor, porque isso convém.
Amo também a dor, sem dor não há poesia e sem poesia o mal não justifica.

Escrevo sobre escrever, e escrevendo me distancio.
Distanciando não sofro, e amando regresso, ao que quero ser.

Sinto falta de mim.
Me sentindo sozinho percebo que o que me falta sou eu, é o conforto de não me importar, de me confortar com o indesejado, e não me importar com você.

Que sejamos felizes e egoístas, porque não há egoísmo nem depressão, só drama e licença poética.

quarta-feira, agosto 31, 2016

Dois mil e dezesseis

"Perdeu! Perdeu!" Levanto as mãos e assumo minha postura vulnerável. Com arma de papéis em punho me fez entregar o orgulho, e já de supetão alcançou o bolso da camisa, aquele que fica logo sobre o coração e me arrancou a dignidade. Sem mesmo me pedir, entreguei constrangido a esperança. Me mandou ficar calado, porque contra sua eloquência de crack orador cristiano, minha voz nada podia falar, todavia Me golpeou riu e zombou da minha história, me ofendeu sem nexo parecia torpe, raivoso. Usou de novo do jeitinho. Acuou a rua, acuou a liberdade, sabe do seu poder. Ultrapassou o sinal vermelho. Adoçou o crime com açúcar contrabandeado. Com as mãos sujas, ajustou limpo o paletó do terno continuou o seu dia. Ele não era negro.

sexta-feira, outubro 02, 2015

Sangue Grafite

Um dos elementos da minha rotina semanal, de quem tentava participar da vida local, era caminhar até o restaurante da avenida perto de casa, para beber uma cerveja e comer algo, sozinho, lentamente, ser observante da vida na rua.
Ao passar por um lote vago na esquina, tinha de descer da calçada e caminhar alguns poucos metros na rua, é que a vegetação já invadia o direito à calçada. Mas isso me importava pouco, me fazia sentir pacato, aliás minha atenção estava na maioria das vezes desviada para a árvore alta de flores rosa, logo adiante.
Naquela época eu ainda tinha um telefone que tocava música, e ela me ambientava todo o processo, incluso o bar. Eu virava de fato um espectador passivo da vida, e me esquivava das conversas pequenas dos garçons.

Em um desses regressos pra casa, lá havia um morador – supostamente – de rua vivendo dentro dos alambrados do lote, aparentava ser um sujeito forte para a sua condição, com todos os estereótipos de aparência e vestimentas de quem vive correndo atrás do presente.
Pouco tempo passou e a atmosfera da esquina tão familiar foi se transformando. Primeiramente em paisagem, a invasão à calçada foi controlada, os pés de mamona foram cortados, o mato semi-raso foi dando lugar a dois canteiros com variados legumes e verduras, um pé de mamão pareceu voltar à vida, e os entulhos abriram espaço para objetos velhos e improváveis, que dispostos em um processo lógico, eram transformados em meios de habitar o que antes era baldio.
Era agradável, especialmente se posto em plano junto à árvore de flores rosa, mas também romântico, Jorge Uoshiton fazia política, sem saber por que ou sem saber quem foi G. Washington.

No dia em que o moribundo se transformaria em herói marginal da minha história, eu caminhava no ritmo lento da música aos meus ouvidos e olhava pro chão, intercalando espiadas com o canto dos olhos, como quem evita o possível erro de interpretação de Uoshiton sobre a razão do meu olhar, e observava o local reaproveitado, reconceituado.
Uoshiton sentava numa grande pedra lisa – perfeito assento natural – e descascava uma lasca de madeira, que provavelmente não viraria violência, certamente não entretenimento.
Foi inevitável o contato visual, até seria rude de mim passar tão perto e não proferir um “boa tarde” ao vizinho, falhando na tentativa anterior de demonstrar simbolicamente minha concordância com sua situação ali.
Reduzi ainda mais o passo, logo após o cumprimento verbal, e trocamos um sorriso amarelo. Fiz então questão de dize-lo, enquanto tirava os headphones do ouvido, a minha mescla de gratidão e inspiração por sua presença no lote, seguido pelo ato metaforicamente triste de nos darmos as mãos pelo pequeno vão do alambrado, e apresentarmos nossos nomes.

Uoshiton era mecânico, e abandonou a vida no interior de Minas pois já se julgava velho para continuar exposto à falta de salubridade do ambiente das oficinas. Me dizia que não se importava com sua situação de rua, como muitas pessoas deveriam achar, mas que se arrependia muito de ter deixado pra trás a família.
Conversava com uma firmeza na voz de quem sabe o que quer, me olhava sempre nos olhos e nunca deixou sua postura de conforto com as pernas cruzadas sobre a pedra, com exceção do aperto de mãos. Sua camisa, que um dia parecia ter sido preta, mas aquela tarde era um tom de grafite muito similar à poeira de motores, combustível e óleo, tinha a palavra LIBERDADE em letras espessas.

Voltei pra casa com meu corriqueiro passo lento, dando mais atenção para o pensamento do que para o mundo, mas o mundo é que ocupava meu pensamento, era Uoshiton no mundo, era a ironia romântica de sua presença na esquina, e era a frustração de pensar e saber, antes mesmo dele me contar, que não ficaria por lá muito tempo mais, que o benefício de sua presença era tão despercebido quanto os seus semelhantes que não encontraram um lote para ocupar.

Antes de eu me despedir, Uoshiton me disse que vieram uns homens trajados de bom e elegante terno preto, óculos escuros e sapatos de graxa preta, tinham pinta de autoridade mas não daquelas de carteiradas, de praxe, mais alta patente. Se dirigiram a ele com o desdém de quem não considerava educação e gentileza um dote necessário para a ocasião e me dissera que entre eles estava o dono do lote, esse sim de vestimenta mais de rotina. Uoshiton ficou tão calado quanto o dono do lote, óculos escuros sempre o oprimiam, despersonificam as pessoas e as faziam lembrar policiais de mais baixa patente, que lhe cutucavam as costas com os cassetetes enquanto dormia sob marquises. O dono do lote parecia ter pouco poder, deveria estar presente só mesmo por questões legais, e com sua firma reconhecida no mandato de despejo.

Durante o café de uma outra manhã, lia, eu, as notícias do dia no tablet, tomava um café intercalado com goles num suco de laranja natural, fumava um cigarro e fazia pausas na leitura para observar as galinhas de um outro lote vago, esse logo à frente da minha janela, não “invadido” por pessoas sem oportunidade, mas usado como galinheiro; O Galo era negro, três galinhas marrons e uma branca, ele achava comida por entre os matinhos e sinalizava para as quatro comerem.
As notícias dos jornais online diziam que com a crise dos combustíveis, juntaram-se governo e iniciativa privada para explorar reservas nunca antes conhecidas de combustível fóssil, cor grafite, grudento e mal cheiroso, altamente tóxico e poluente; suspeitas de que isso já era de conhecimento do interesse capital surgiam de todos os lados, e de fato era quase tão simplório de se entender como a dinâmica das galinhas, mas nada ainda podia ser comprovado, e os homens vestidos de preto fechavam potenciais terrenos de exploração a torto e a direita pelo país.

Com o desenvolver do tempo, pássaros eram atraídos para as regiões onde os depósitos de combustível fóssil eram encontrados, eu notei um aumento considerável de canários, andorinhas, pombas rolinha, garrinchinhas e bem-ti-vis de papo amarelo rodeando a casa. O comportamento das galinhas do outro lote parecia normal.
Isso porque os pássaros se alimentavam de pequenos veios que emergiam da terra, como as primeiras bolhas que emergem de uma sopa fervente, artérias visíveis na carne bovina crua, ainda não limpa pelos açougueiros, um líquido viscoso, morno, sangue grafite, o subproduto do restolho fóssil. O chorume não atraía urubus nem ratos, mas sim pássaros pequenos e ágeis, quase ironia, como as malícias administrativas que os depósitos iam catalogando.

Uoshiton já tinha abandonado o terreno fértil de comida humana, fértil de combustível, comida de pássaro, e não voltei a vê-lo depois do dia em que nos conhecemos. Nos demais lotes vagos pelo bairro – as vezes aproveitados para galinheiros – eu tampouco tinha esperanças em vê-lo, nem sei por que deveria.

O ambiente da redondeza foi, dentro dos seus limites de possibilidade, vagarosamente mudando depois do aparecimento misterioso da fonte no lote da esquina. Os cantos dos recém chegados pássaros se estendiam desde o café da manhã até o cigarro do pôr do sol, desde a janela. Os vizinhos pareciam mais enervados, ou lhes incomodava o canto dos pássaros – sobressaindo aos sons dos alarmes e buzinas, ou lhes afetavam alguma coisa de energia mística negativa que emergia à superfície a partir dos veios abertos no lote. Os semblantes eram obscuros e sem vida, caminhavam firmes e de passos certeiros, os olhos buscavam algo no espaço vazio logo a diante, se vestiam com calças pesadas e camisas de mangas longas, e assim os costumes foram se adaptando ao acaso, simbolizando o que era causa assídua de toda a origem daquele cenário. Todos agora comiam carne de pássaros capturados com alçapões, os seus cachorros tristes e monótonos agora se ocupavam com a caça recreativa, ainda triste, ainda negligenciados pelos donos, e a prefeitura envenenava as folhas das árvores para tentar controlar a rápida diversificação das aves. A natureza certamente incomoda onde não há cores nem música.

Dizem por aí, que a natureza foi criada por deus durante o entardecer, e por isso os pássaros cantam nesse horário, uma espécie de celebração e agradecimento à criação. De fato o pôr do sol me comove mais do que o nascer.
Me servi uma caneca de café fresco, preto e sem açúcar, tirei os meus chinelos. Caminhava em direção à janela, fiz uma pausa na cristaleira da sala, onde se encontram as garrafas de whisky importadas, ofereci-me um chorinho para desafogar o cansaço do trabalho e pingar de heresia meu café, pra assistir a deus no horizonte laranja e rosa.

Senti o frescor do piso de porcelanato da sala e o contraste da macies do tapete logo a diante, observei por alguns segundos as janelas alheias ao redor, tudo era calmo.Pensei um pouco sobre Uoshiton e sua camisa de Liberdade, e atirei a guimba de cigarro com aquele estilingue de dedos corriqueiro dos fumantes.
O cigarro voou em movimento rotativo, o filtro era seu torço, a brasa sua cabeça, que via intercalados o asfalto quebradiço e o céu de cores de outono, e em sua última volta me viu lá atrás, à janela, em lenta mudança de expressão facial, da calma para o susto, observando seu próprio movimento. E então viu mais uma vez o céu, e em um quarto de volta a mais, viu um pássaro que voava raso, vinha da esquina onde os veios de combustível fóssil floresciam da terra, e alimentavam suas necessidades, e banhavam suas penas. Chocaram-se brasa e pássaro.
Um projétil em chamas criou-se em frente à minha janela, e excitou o pôr-do-sol, voava então em direção a ele. Senti-me culpado por aquilo tudo, também.