Um dos elementos da minha rotina semanal,
de quem tentava participar da vida local, era caminhar até o restaurante da
avenida perto de casa, para beber uma cerveja e comer algo, sozinho, lentamente,
ser observante da vida na rua.
Ao passar por um lote vago na esquina,
tinha de descer da calçada e caminhar alguns poucos metros na rua, é que a
vegetação já invadia o direito à calçada. Mas isso me importava pouco, me fazia
sentir pacato, aliás minha atenção estava na maioria das vezes desviada para a
árvore alta de flores rosa, logo adiante.
Naquela época eu ainda tinha um telefone
que tocava música, e ela me ambientava todo o processo, incluso o bar. Eu
virava de fato um espectador passivo da vida, e me esquivava das conversas pequenas dos garçons.
Em um desses regressos pra casa, lá havia um morador – supostamente – de rua
vivendo dentro dos alambrados do lote, aparentava ser um sujeito forte para a
sua condição, com todos os estereótipos de aparência e vestimentas de quem vive
correndo atrás do presente.
Pouco tempo passou e a atmosfera da esquina tão familiar foi se transformando.
Primeiramente em paisagem, a invasão à calçada foi controlada, os pés de mamona
foram cortados, o mato semi-raso foi dando lugar a dois canteiros com variados
legumes e verduras, um pé de mamão pareceu voltar à vida, e os entulhos abriram
espaço para objetos velhos e improváveis, que dispostos em um processo lógico,
eram transformados em meios de habitar o que antes era baldio.
Era agradável, especialmente se posto em plano junto à árvore de flores rosa,
mas também romântico, Jorge Uoshiton fazia política, sem saber por que ou sem
saber quem foi G. Washington.
No dia em que o moribundo se transformaria em herói marginal da minha história,
eu caminhava no ritmo lento da música aos meus ouvidos e olhava pro chão, intercalando
espiadas com o canto dos olhos, como quem evita o possível erro de
interpretação de Uoshiton sobre a razão do meu olhar, e observava o local reaproveitado,
reconceituado.
Uoshiton sentava numa grande pedra lisa –
perfeito assento natural – e descascava uma lasca de madeira, que provavelmente
não viraria violência, certamente não entretenimento.
Foi inevitável o contato visual, até seria rude de mim passar tão perto e não
proferir um “boa tarde” ao vizinho, falhando na tentativa anterior de
demonstrar simbolicamente minha concordância com sua situação ali.
Reduzi ainda mais o passo, logo após o
cumprimento verbal, e trocamos um sorriso amarelo. Fiz então questão de dize-lo,
enquanto tirava os headphones do
ouvido, a minha mescla de gratidão e inspiração por sua presença no lote,
seguido pelo ato metaforicamente triste de nos darmos as mãos pelo pequeno vão
do alambrado, e apresentarmos nossos nomes.
Uoshiton era mecânico, e abandonou a vida no interior de Minas pois já se
julgava velho para continuar exposto à falta de salubridade do ambiente das
oficinas. Me dizia que não se importava com sua situação de rua, como muitas
pessoas deveriam achar, mas que se arrependia muito de ter deixado pra trás a
família.
Conversava com uma firmeza na voz de quem
sabe o que quer, me olhava sempre nos olhos e nunca deixou sua postura de
conforto com as pernas cruzadas sobre a pedra, com exceção do aperto de mãos.
Sua camisa, que um dia parecia ter sido preta, mas aquela tarde era um tom de
grafite muito similar à poeira de motores, combustível e óleo, tinha a palavra
LIBERDADE em letras espessas.
Voltei pra casa com meu corriqueiro passo
lento, dando mais atenção para o pensamento do que para o mundo, mas o mundo é
que ocupava meu pensamento, era Uoshiton no mundo, era a ironia romântica de
sua presença na esquina, e era a frustração de pensar e saber, antes mesmo dele
me contar, que não ficaria por lá muito tempo mais, que o benefício de sua presença
era tão despercebido quanto os seus semelhantes que não encontraram um lote
para ocupar.
Antes de eu me despedir, Uoshiton me disse que vieram uns homens trajados de
bom e elegante terno preto, óculos escuros e sapatos de graxa preta, tinham
pinta de autoridade mas não daquelas de carteiradas, de praxe, mais alta
patente. Se dirigiram a ele com o desdém de quem não considerava educação e
gentileza um dote necessário para a ocasião e me dissera que entre eles estava
o dono do lote, esse sim de vestimenta mais de rotina. Uoshiton ficou tão
calado quanto o dono do lote, óculos escuros sempre o oprimiam, despersonificam
as pessoas e as faziam lembrar policiais de mais baixa patente, que lhe
cutucavam as costas com os cassetetes enquanto dormia sob marquises. O dono do
lote parecia ter pouco poder, deveria estar presente só mesmo por questões
legais, e com sua firma reconhecida no mandato de despejo.
Durante o café de uma outra manhã, lia, eu, as notícias do dia no tablet, tomava um café intercalado com
goles num suco de laranja natural, fumava um cigarro e fazia pausas na leitura
para observar as galinhas de um outro lote vago, esse logo à frente da minha
janela, não “invadido” por pessoas sem oportunidade, mas usado como galinheiro;
O Galo era negro, três galinhas marrons e uma branca, ele achava comida por
entre os matinhos e sinalizava para as quatro comerem.
As notícias dos jornais online diziam que com a crise dos combustíveis,
juntaram-se governo e iniciativa privada para explorar reservas nunca antes conhecidas
de combustível fóssil, cor grafite, grudento e mal cheiroso, altamente tóxico e
poluente; suspeitas de que isso já era de conhecimento do interesse capital
surgiam de todos os lados, e de fato era quase tão simplório de se entender
como a dinâmica das galinhas, mas nada ainda podia ser comprovado, e os homens vestidos
de preto fechavam potenciais terrenos de exploração a torto e a direita pelo
país.
Com o desenvolver do tempo, pássaros eram atraídos para as regiões onde os
depósitos de combustível fóssil eram encontrados, eu notei um aumento
considerável de canários, andorinhas, pombas rolinha, garrinchinhas e bem-ti-vis
de papo amarelo rodeando a casa. O comportamento das galinhas do outro lote parecia
normal.
Isso porque os pássaros se alimentavam de pequenos veios que emergiam da terra,
como as primeiras bolhas que emergem de uma sopa fervente, artérias visíveis na
carne bovina crua, ainda não limpa pelos açougueiros, um líquido viscoso,
morno, sangue grafite, o subproduto do restolho fóssil. O chorume não atraía
urubus nem ratos, mas sim pássaros pequenos e ágeis, quase ironia, como as
malícias administrativas que os depósitos iam catalogando.
Uoshiton já tinha abandonado o terreno fértil
de comida humana, fértil de combustível, comida de pássaro, e não voltei a vê-lo
depois do dia em que nos conhecemos. Nos demais lotes vagos pelo bairro – as
vezes aproveitados para galinheiros – eu tampouco tinha esperanças em vê-lo,
nem sei por que deveria.
O ambiente da redondeza foi, dentro dos
seus limites de possibilidade, vagarosamente mudando depois do aparecimento
misterioso da fonte no lote da esquina. Os cantos dos recém chegados pássaros se
estendiam desde o café da manhã até o cigarro do pôr do sol, desde a janela. Os
vizinhos pareciam mais enervados, ou lhes incomodava o canto dos pássaros –
sobressaindo aos sons dos alarmes e buzinas, ou lhes afetavam alguma coisa de
energia mística negativa que emergia à superfície a partir dos veios abertos no
lote. Os semblantes eram obscuros e sem vida, caminhavam firmes e de passos
certeiros, os olhos buscavam algo no espaço vazio logo a diante, se
vestiam com calças pesadas e camisas de mangas longas, e assim os costumes
foram se adaptando ao acaso, simbolizando o que era causa assídua de toda a
origem daquele cenário. Todos agora comiam carne de pássaros capturados com
alçapões, os seus cachorros tristes e monótonos agora se ocupavam com a caça
recreativa, ainda triste, ainda negligenciados pelos donos, e a prefeitura
envenenava as folhas das árvores para tentar controlar a rápida diversificação
das aves. A natureza certamente incomoda onde não há cores nem música.
Dizem por aí, que a natureza foi criada por deus durante o entardecer, e por
isso os pássaros cantam nesse horário, uma espécie de celebração e
agradecimento à criação. De fato o pôr do sol me comove mais do que o nascer.
Me servi uma caneca de café fresco, preto e
sem açúcar, tirei os meus chinelos. Caminhava em direção à janela, fiz uma
pausa na cristaleira da sala, onde se encontram as garrafas de whisky
importadas, ofereci-me um chorinho para desafogar o cansaço do trabalho e
pingar de heresia meu café, pra assistir a deus no horizonte laranja e rosa.
Senti o frescor do piso de porcelanato da sala
e o contraste da macies do tapete logo a diante, observei por alguns segundos
as janelas alheias ao redor, tudo era calmo.Pensei um pouco sobre Uoshiton e sua camisa
de Liberdade, e atirei a guimba de cigarro com aquele estilingue de dedos corriqueiro
dos fumantes.
O cigarro voou em movimento rotativo, o filtro era seu torço, a brasa sua
cabeça, que via intercalados o asfalto quebradiço e o céu de cores de outono, e
em sua última volta me viu lá atrás, à janela, em lenta mudança de expressão facial,
da calma para o susto, observando seu próprio movimento. E então viu mais uma
vez o céu, e em um quarto de volta a mais, viu um pássaro que voava raso, vinha
da esquina onde os veios de combustível fóssil floresciam da terra, e
alimentavam suas necessidades, e banhavam suas penas. Chocaram-se brasa e
pássaro.
Um projétil em chamas criou-se em frente à minha janela, e excitou o
pôr-do-sol, voava então em direção a ele. Senti-me culpado por aquilo tudo,
também.